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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

KAFKIANAS

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

As fotografias de Franz Kafka são protegidas por aura de tristeza profunda. O olhar, perdido a meio caminho entre a câmara e o fotógrafo, sustenta a linha fina dos lábios e do queixo. Com formação jurídica, Franz Kafka trabalhou sua vida breve na burocracia. Judeu tcheco escreveu obras em alemão para serem purificadas através do fogo, que nunca veio.

Tomada por pais opressores e venais, administradores e tarefas impossíveis de serem cumpridas, sua obra, na figura auto-referente de “K.” , transita absorvida pelo mundo dos objetos e das relações mediatizadas.

O eixo de sua angústia pode ser encontrado na “Carta ao Pai”, escrita cinco anos antes da morte tuberculosa: “meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer a seu respeito”.

Na leitura do filósofo alemão Walter Benjamin, em Kafka “o pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície.”

“O Processo” é obra inacabada, labiríntica; reelabora os cenários de um mundo administrado pela razão que o instrumentaliza e cega sua compreensão. A administração, rede impessoal de atribuições, e a lógica fria e monstruosa da lei, presentes também em outras obras, assumem no Prozess uma dimensão absurdamente ampliada: culpa, adiamento, expiação. A Justiça, assim como a Política, são substituídas pelo Destino, entendido enquanto inevitável Fatalidade.

O animal de A Toca, o pobre Gregor Samsa da Metamorfose, o burocrata K. em O Castelo, assim como outros personagens, permitem localizar o indivíduo na obra de Franz. Diante de uma sociedade que o absorve, digere e dejeta, o indivíduo percorre um longo caminho, do desconhecimento de si e do mundo, até a percepção dolorosa do malogro a que foi submetido. Muitas vezes, tarde demais. Sempre tarde demais. Inutilmente. Mas apontando para os que ficam, a possibilidade da crítica.
Oscilando entre ação e angústia, Franz Kafka traduziu sua dor em uma obra fundamental para a compreensão do século vinte. Não é pouco para quem se considerava um fracasso.

Franz Kafka nasceu em 1883 na cidade de Praga, Boêmia (hoje República Tcheca), então pertencente ao Império Austro-Húngaro. Morreu exatamente um mês antes de completar quarenta anos de idade. Pediu ao amigo Max Brod para queimar seus escritos. Devemos agradecer-lhe a infidelidade...

* advogado militante, professor e leitor assíduo de Kafka desde o século passado.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

DAS ESTRADAS DE ENROLAGEM PELO BRASIL AFORA

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Está em todas as folhas, apesar de parecer mais um folhetim, daqueles bem fuleiros.
Enquanto descobrimos, estarrecidos, que o “rombo” no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes foi de apenas oitenta milhões de reais e, ao mesmo tempo, respiramos aliviados porque as anunciadas paralisações de obras não atingirão a duplicação da zero-cinquenta, ficamos ainda mais apreensivos.
A privatização do público, negação da essência do republicanismo, já é assunto tão corriqueiro que nem nos afeta mais. Fundamento da ideologia e por consequência do controle social, a repetição ad infinitum – e, por que não, ad nauseam, do mais do mesmo, provoca uma sensação geral de anestesia: já não nos importamos mais... e daí? Sempre foi assim, sempre será assim...
Uma determinada interpretação da ética política pode levar às tortuosas conclusões dos indiciados e raramente condenados por lesar os interesses coletivos: “tudo é possível porque nada será punido; seu eu não fizer, alguém fará; no final das contas, apurados os meus interesses particulares, no somatório geral o benefício será coletivo.”
Mas, de toda forma, satisfeitos estamos todos, não é mesmo? A ascensão econômica dos histórica e tradicionalmente excluídos, traduzida em diversas bolsas e consumo regrado a conta-gotas das parcelas no cartão.
As classes médias felizes com a primeira viagem ao exterior graças aos programas de milhagens e que tais, chacoalhando em aviões com o maravilhoso conforto que faria corar um monge budista. E dá-lhe consumo desenfreado e inconseqüente. E vamos minando o futuro pessoal e social às custas do endividamento irresponsável e meramente consumista.
Enquanto isso – mas não na Sala de Justiça, como no desenho dos Superamigos, uma pequena corriola se empanturra às custas dos nossos recursos e interesses, fraudando, lesando e corrompendo os valores republicanos em nome do “progresso” lá deles.
Anestesia geral é isso mesmo. Nem a atuação ridícula da “selecinha” de futebol na Copa América na Argentina consegue chacoalhar essa sensação de amortecimento geral. (aliás, observaram a “combina”? Da mesma forma ocorreu na Copa do Mundo do ano passado. O Brasil é eliminado em sequência, logo depois do Brasil... é de se pensar...)
Empanturrados, obesos de consumismo. Bovinamente ruminamos a nossa histórica capacidade de achar uma zona de conforto apenas um pouquinho acima do chão, em linha de estase. Enquanto isso, avançando pelo jardim, a corriola esmaga repolhos e crisântemos.
Ocupados demais com brinquedinhos eletrônicos e comida fast food, olhamos pela janela. Identificamos essa turma, mas achamos que a janela é apenas mais uma tela de TV, flat. Aguardamos o comercial para buscar mais um saco de pipoca de microondas. Fechamos as cortinas da sala. Mas a janela permanece lá. E é impossível desligar seu conteúdo, que em breve tomará de assalto nossa casa...

*advogado militante, filho da “geração do meio”, meio chateado com mais um escândalo e mais ainda com nossa capacidade de ignorá-lo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A ZUMBILÂNDIA É AQUI MESS...

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Deu em todos os media, há duas semanas. Após consulta de um cidadão, o City Council de uma cidade inglesa chamada Bristol resolveu divulgar informações, sob a forma de panfletos, de como devem se portar os cidadãos da cidade em caso de um ataque de mortos-vivos (ou desmortos, zumbis, ou outra denominação equivalente).
Outra cidade inglesa, Leicester, também recebeu uma consulta de um cidadão preocupado com as providências que o poder público local poderia tomar em caso de uma ataque dessa moçada descerebrada e sedenta de sangue. Segundo informações da BBC (British Broadcasting Corporation), o cidadão preocupado assim se manifestou:
"Os senhores poderiam, por favor, me informar quais as medidas adotadas em caso de uma invasão de zumbis? Tendo visto vários filmes, está claro que as preparações para um evento deste são falhas, e as prefeituras do reino deveriam se precaver. Por favor, forneçam qualquer informação que vocês possuam".
A Câmara de Bristol então divulgou um folheto explicando como reagir em caso de ocorrência de zumbis:
“1) Tente desconectar o tronco encefálico do resto do corpo por meio de decapitação;
2) Evite contato desprotegido;
3) Não se aproxime, a menos que esteja adequadamente armado. Zumbis são extremamente agressivos.”
Em nosso modesto entendimento, seriam necessários outros esclarecimentos:
a) Esses procedimentos seriam aplicáveis a todo e qualquer tipo de zumbi? Dos Palmares, por exemplo, não deveria ter tratamento diferenciado, por ser rei?
b) Se zumbis originados por desastre nuclear em usinas de propriedade privada, a responsabilidade pelos eventuais danos causados seria solidária ou concorrente?
c) Se derivados de pesquisas militares, caberia ação de regresso contra os cientistas responsáveis?
d) Parece-me que o autor do folheto confundiu os monstros: decapitação só elimina definitivamente vampiros, mas não mortos-vivos. Ele não deve ter assistido aos filmes do George Romero e nem acompanhou a série de quadrinhos Zumbis Marvel. O que funciona mesmo contra desmortos é tiro na cabeça!
e) Contato desprotegido refere-se a que tipo de contato? Essa é uma recomendação genérica para evitar contágio em relação a uma gama diversa de doenças infecto-contagiosas. Quem falou que “zumbisismo” é doença?
f) Quem quer se aproximar de zumbis e com qual finalidade? Na extensa iconografia dos monstros, charme e malemolência são atributos de vampiros, começando com o Drácula de Bram Stoker até chegarmos aos deprimidos e existencialistas vampiros de “Crepúsculo”. Ninguém em sã consciência aproximar-se-ia (gostaram da mesóclise?) de um zumbi, diga-se de passagem...
Enfim, e justificando o título do artigo, a zumbilândia é aqui mesmo por vários motivos: políticos embalsamados que não desgrudam do poder e de suas benesses, e que teimam em permanecer na vida pública, tornando-a privada (essa é do avô dos “cassetas”, o Sr. Aparício Torelli, o Barão de Itararé); burocratas de todos os níveis e matizes, que teimam em amarrar o serviço para justificar salários e interesses privatistas; e etc., para não delongar demais o assunto.

*advogado militante, fã de Bram Stoker e George Romero, leitor de quadrinhos e desconfiado de zumbis corados, que respiram e agem como vampiros...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

CORREIO QUE ATRASA NÃO ADIANTA

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com


Hermes era o mensageiro dos deuses, na mitologia greco-romana. Senhor da velocidade e dos caminhos, ora era apresentado como um adolescente imberbe e seminu, ora era representado como um jovem em armadura.
Mensagens divinais são herméticas por definição. Cabe ao adivinho, ao oráculo, ao poeta-rapsodo traduzir seus possíveis sentidos.
No processo de independência das treze colônias inglesas na América, as tentativas metropolitanas de cercar a autonomia dos colonos passaram pela criação de severas leis de controle e tributos. Uma delas ficou conhecida como Stamp Act, a Lei do Selo, que obrigava os colonos a adquirir selos do governo inglês para permitir a circulação de documentos, jornais, contratos.
O selo postal tem como finalidade permitir a circulação de correspondências com a mediação de uma empresa que se ocupa de armazená-los, transportá-los e fazê-los chegar a seu destino com presteza e segurança.
Herméticas ou não, sagradas ou profanas. Contratos ou singelas cartas de amor e saudade, todas estão submetidas aos correios. No Brasil, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, com natureza jurídica de empresa pública federal.
Recentemente as folhas divulgaram um vídeo que mostrava o descaso de funcionários da ECT na manipulação de correspondências. Não sabemos até que ponto houve ali ensaio ou má-fé.
Mas com certeza sabemos do descaso, da lentidão e do despreparo afeitos a esse importante setor de serviços públicos, em tese gerido pelo Estado brasileiro.
A conta que deveria ser paga no dia 12 é entregue pelos Correios no dia 15. Quem paga os juros decorrentes do atraso? A ECT simplesmente “lava as mãos”.
A notificação extrajudicial que deveria ser entregue no prazo, atrasa. Quem se responsabiliza? Assim, aos trancos e barrancos, os Correios descem a ladeira: caminhão carregado de correspondências, sem freio e com os pneus carecas.
Nesse caso, prefiro o hermetismo mitológico. Mesmo sem tradução, a mensagem chegava a tempo e a hora!

*advogado militante, lamenta que a internet ainda não seja capaz de enviar todo tipo de correspondência. Uma opção seria o teletransporte de “Jornada nas Estrelas” (“dois pra subir Scotty!)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

JALECO NÃO É FANTASIA, JÁ DIZIA MINHA TIA!

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Caminhando pelas cidades, é comum observar a moçada que estuda nos cursos da área de saúde, e mesmo os profissionais, usando o jaleco, equipamento de uso obrigatório em suas atividades profissionais, pendurado no ombro pela alça traseira, como se fosse um acessório. As mangas do jaleco vão lambendo tudo por onde passam. Arrastam-se por batentes de portas, absorvem o suor do usuário, agregam poeira e sujeira de todo tipo.

Saindo de casa ou do ambiente de estudo e de trabalho usando o jaleco, seja de modo normal, seja como penduricalho, o profissional da saúde pode transportar todos os tipos de doenças a tiracolo. Sabemos todos que certos símbolos de status profissional são largamente utilizados para a identificação de seus usuários perante a comunidade. O jaleco branco simboliza muito bem a identidade dos profissionais da saúde.

No entanto, jaleco não é fantasia de carnaval, nem pode ser utilizado indiscriminadamente fora do ambiente para o qual seu uso foi projetado. O uso irresponsável e deslocado – no tempo e no espaço – projeta problemas graves de saúde: todos os tipos de agentes de doenças infectocontagiosas podem proliferar e se propagar a partir desse passeio de jaleco carnavalesco.

Pois bem. Mas essa farra vai acabar. Em Belo Horizonte foi aprovado o Projeto de Lei (PL) 1.102/2010, já em segundo turno, no final do ano passado. O PL proíbe os profissionais da saúde que militam na região de BH, de utilizar seus equipamentos de proteção individual (EPI), inclusive o jaleco, fora do ambiente de trabalho. Tudo para impedir a contaminação e a propagação de doenças infectocontagiosas.

E, em nível estadual, tramita na Câmara dos Deputados o PL 6.626/2009. Ele proíbe a utilização dos EPI’s dos trabalhadores da área da saúde fora do ambiente de trabalho. Importante ressaltar que os infratores da norma serão penalizados com advertência e multa, independente de outras sanções cíveis e penais. E mais importante ainda, os empregadores serão responsabilizados solidariamente pela infração.

Sabemos que norma sem sanção não “funciona”. Por isso, será importante acompanhar as normas regulamentadoras que fixarão os valores das multas a serem aplicadas, bem como a forma de aplicação das penas.

De todo modo, esperemos que o bom senso prevaleça. No Brasil, tem lei que “pega” e tem lei que não “pega”. Mesmo existindo norma que coíbe o uso do jaleco fora do ambiente de trabalho e punição em dinheiro para os infratores às normas em comento, sem disciplina e educação nada vai adiantar.

Jaleco não é fantasia de carnaval. Jaleco não é acessório que se pendura displicentemente a tiracolo. Jaleco é EPI, e deve ser utilizado estritamente em ambiente de trabalho.

E estamos conversados!


*advogado militante, professor universitário, alérgico a jalecos pendurados a tiracolo.

MEDICAMENTOS, TEMPO E PROPAGANDA

*Weber Abrahão Júnior
advocaciaweber@gmail.com

“A Máquina do Tempo” é obra clássica da literatura de ficção científica do século dezenove, do inglês Herbert George Wells. A experiência de avançar e retroceder no tempo como expectador privilegiado da História (testemunha mas também agente) angustia e ao mesmo tempo dá um fio de esperança ao leitor.
“Tempo é dinheiro” é expressão do tempo do onça, como diria minha avó Zachia Calixto, antigamente, no século passado, lá em Tupaciguara.
“Time” é música do disco “The Dark Side of the Moon” clássico do progressivo pinkfloydiano de meados dos anos 1970. E você corre e corre para agarrar o sol, mas ele se põe... E então é tarde, o trabalho foi feito, é hora de fazer uma nova toca (corre coelho, corre...).
“Como matar o tempo”, perguntafirma o ex-Titã Arnaldo Antunes. “Tempo, tempo, tempo”, viaja Caetano Velloso.
Costumo dizer aos meus alunos quando reclamam da falta de tempo para estudar: “tempo é um animal domesticado em casa”. Ou ainda: “tempo é um produto de fabricação caseira”.
Afinal, tempo é o que se tem ou tempo é o que se perde? Responda você, caro leitor! Mas toda essa divagação é para introduzir o assunto da semana: as propagandas de medicamentos nos meios de comunicação, em especial na televisão e, de forma ainda mais intensa e interessante, no rádio, pois é nele que o fenômeno se deixa capturar melhor.
Propagandear, propagar, projetar, produzir, propor para vender. Geralmente os tempos de propaganda nos mídia (conjunto dos meios de comunicação de massa) são pré-estabelecidos em blocos de poucos e preciosos segundos. Dez, quinze, trinta segundos, suficientes para condensar mensagens e meios.
Pois bem. Como a propaganda de medicamentos também se sujeita aos limites legais devidamente constitucionalizados do Código de Defesa do Consumidor – o CDC, ela deve respeitar agora e sempre o princípio da informação e ainda o princípio do direito de escolha do consumidor.
Por óbvio, o princípio jurídico do direito à informação atende tanto ao direito que o consumidor tem de ser corretamente informado sobre as indicações de prescrição, dos resultados e dos benefícios esperados, quanto aos riscos apresentados pela utilização das substâncias farmacológicas à venda.
Além disso, fabricantes de medicamentos também devem evitar a utilização demagógica e irresponsável de propaganda enganosa, considerada crime contra as relações de consumo, de acordo com o CDC.
No entanto, observamos com apreensão as “inocentes” e bem produzidas, coloridas e estreladas campanhas publicitárias de medicamentos, especialmente aqueles ligados ao combate aos diversos tipos de dor, certamente os mais consumidos anualmente em escala de centenas de milhões de comprimidos, pozinhos efervescentes, pastilhas, injeções e outras possíveis apresentações comerciais.
Obedecendo ao princípio da informação, que obriga os fabricantes de remédios a esclarecer aos consumidores os riscos à saúde inerentes ao uso de produtos medicamentosos, as empresas utilizam noventa e nove por cento do tempo de produção e veiculação para enaltecer o remédio, e apenas um por cento para as advertências!
Preste atenção da próxima vez que ouvir um desses “reclames de botica”. No rádio é ainda mais gritante o abuso cometido pelos fabricantes de remédios. A gente escuta algo assim:
esseremédioécontraindicadoaosportadoresdedengueeoutrasdoençassimilaresbemcomoospossuidoresdefuscaeavião.
Desse modo, somos bombardeados com belas imagens e textos declamados por atores consagrados, mas nosso direito à informação é solenemente subtraído, nas barbas do Estado, que não providencia as adequações necessárias à legislação, à saúde pública e ao bom senso puro e simples.
Sugestão: use um pouco de seu tempo útil e proteste junto a seu deputado federal (tá lembrado pra quem você empenhou sua cidadania nas últimas eleições?). Vamos fazer uma campanha para a moralização das propagandas de medicamentos, moçada!
E estamos conversados!
*Advogado militante e consumidor regular de remédio para hipertensão

AO AMIGO AUSENTE

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Telmo Vinícius da Silva. Companheiro Telmo. Companheiro Mazzaroppi. Irmão incondicional, apesar de tempos e distâncias. Irmão de gole e tira-gosto. Irmão mais velho em Machado de Assis, em coerência e inteligência.
Universidade Federal de Uberlândia, 1982. Curso de Licenciatura em Estudos Sociais. Início de curso e de disciplina. Aula sábado à tarde. Apresentações de praxe. Do outro lado da sala, o figura: botina, camisa de mangas curtas abotoada até a altura do peito. Grande e vasto bigode, que cofiava eventualmente.
Na sua vez, ele falou de Viçosa, dos goles e tira-gostos, e da profissão de agrônomo. E eu, do outro lado da sala, espiava aquele voraz leitor de Machado de Assis, aquele antropólogo do cerrado, aquele verdadeiro “intelectual orgânico” (por ser “minhoca”, da terra), embora eu ainda não soubesse de nada disso.
Foi amor ao primeiro gole. Amizade que nasceu após aquela aula, nas escadas do prédio do curso de História - o saudoso bloco H do Campus Santa Mônica, embalada na cachaça trazida da última viagem que ele fizera a Itapagipe. De lá, um pulinho no bar do cumpadre Luís, em frente ao portão do Campus da Educa, pra confirmar a amizade com algumas cervejas.
Uma vida inteira de amizade. Uma vida inteira aprendendo com ele as sutilezas da fina ironia. Uma vida inteira ouvindo citações machadianas em contextos os mais distintos e pertinentes possíveis.
Quando o Gentil nasceu, visita no hospital. A “Dona Maria”, esposa, amiga e companheira, feliz. E o Mazzaroppi segurando o menino com um só braço, explodindo – contido, toda a sua alegria e felicidade.
Visita em São Paulo, quando trabalhou na administração de Luiza Erundina. A fina ironia: ouvir música erudita ao lado do aeroporto, que tremia e chacoalhava com os aviões vibrando turbinas às três da manhã.
Uma enciclopédia ambulante. Uma capacidade infinita de enxergar detalhes e articulá-los em tiradas e sacadas brilhantes, onde às vezes eu só via em preto e branco. Uma impaciência infinita com desmandos, “jeitinhos” e “maracutaias”.

Um coração maior que o corpanzil, do qual se orgulhava. Como todo bom escorpiano, bom de cozinha, copo e garfo. Ultimamente inventava receitas trabalhosas, pelo amor à arte e pelo prazer em receber os amigos. Simplicidade e sinceridade extremas, às vezes de doer. Mas amigo fiel e lúcido, sempre. E como todo bom amigo, implacável e efusivo na crítica e no acolhimento.
Com o tempo, trabalho, família, outras obrigações vão conduzindo os nossos caminhos, espaçando as visitas, delineando outras situações. Mas sem perder o costume de telefonar no aniversário um do outro. Afinal, os dois intensos escorpianos, aniversariantes com apenas dois dias de diferença, a sintonia não desaparece.
Estranho e engraçado. Pela primeira vez em quase trinta anos, não nos telefonamos em novembro passado. Pela primeira vez o cotidiano engoliu esse compromisso jamais escrito ou jurado, por espontâneo e natural.
Estranho e triste. Sábado fomos até a empresa para dar um alô e, quem sabe, marcar uma reunião para goles de suco e tira-gostos mais leves, mas não “light”. Estava fechada, emendaram o feriado.
Estranho e súbito. Hoje, vinte e nove de junho de 2011, o companheiro Mazzaroppi deixou a gente. Como me disse a Alice, a “Dona Maria” hoje à tarde: “é, o seu amigo foi embora”. E eu, em um abraço de desalento e consolo, não consegui dizer quase nada, do que agora digo, mas agora falo. Não consegui oferecer uma resposta a essa partida, porque toda partida nos surpreende, por mais que seja esperada.
Os novembros de minha vida, a partir de hoje, serão um pouco mais vazios. Não espero mais aquele telefonema. Não darei mais aquele telefonema. Vai com Deus meu irmão, meu companheiro Telmo, meu amigo Mazzaroppi.

*cidadão do mundo, sócio-fundador do Clube da Anta, fabulosamente triste...

quinta-feira, 31 de março de 2011

A LEI MARIA DA PENHA E A PROTEÇÃO DO HOMEM EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Conheci um cidadão que apanhava regularmente da esposa, três ou quatro vezes por mês, todos os meses. Eram bofetões, empurrões, unhadas, dentre outras. Ele contava essa história triste e com tristeza, todas as vezes que nos encontrávamos. Quando questionado em relação à insistência em perdurar o relacionamento, recordava aquela moda sertaneja: “é o amor...”

Depois de alguns anos sem vê-lo, reencontrei-o recentemente. Separado da esposa “street fighter”, de companheira nova e sem escoriações. Motivo da separação: no último episódio de violência doméstica, foi hospitalizado com fraturas em braço e pernas. Dessa vez a dor falou mais alto que o amor...

A propósito do tema, a Lei Maria da Penha foi promulgada há cerca de cinco anos e, como se sabe, tem como escopo a proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar. Nos termos de sua ementa:

“Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
Pois bem. A polêmica hoje gira em torno de dois aspectos:
1. A constitucionalidade da lei, já que trataria desigualmente os iguais, pois homens e mulheres são considerados iguais, sem qualquer distinção, nos termos do artigo 5º, caput da nossa Constituição Federal. A existência de uma lei que busca a proteção apenas das mulheres em situação de violência familiar poderia descaracterizaria esse comando constitucional denominado princípio da isonomia. Recente decisão do STF confirmou a constitucionalidade de um dos artigos da Lei Maria da Penha, o 41, que não permite a aplicação de instrumentos normativos para descaracterizar o crime de violência contra a mulher.

Segundo o Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, o dispositivo se coaduna com o que propunha Ruy Barbosa, segundo o qual a regra de igualdade é tratar desigualmente os desiguais. Isto porque a mulher, ao sofrer violência no lar, encontra-se em situação desigual perante o homem.

Em outras palavras, se existe o princípio da igualdade formal (teórica) entre homens e mulheres, para que ela se torne material (prática), é preciso que os desiguais sejam desigualmente tratados, para que ao final todos se equiparem.

Se a mulher é a “parte frágil” das relações familiares, natural protegê-la preferencialmente. No entanto, ainda persiste o debate sobre a constitucionalidade de todo o texto normativo dessa Lei. O STF está, desde outubro do ano passado, apreciando a matéria.

2. A sua aplicabilidade para homens em situação de violência doméstica é outro aspecto polêmico. Desde a promulgação da lei existem várias decisões favoráveis à aplicação da norma protetiva em comento a homens em situação de violência doméstica. Recentemente, decisão de primeira instância no Rio Grande do Sul, na comarca de Rio Pardo, decidiu pela aplicação da Lei Maria da Penha a uma relação homossexual e concedeu medida de proteção a um homem que afirmou estar sendo ameaçado pelo ex-companheiro.

Segundo o Portal IG (Último Segundo), “... a decisão do juiz Osmar de Aguiar Pacheco foi tomada na última quarta (23/02/2011) e anunciada nesta sexta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A medida obriga o homem a manter uma distância de, no mínimo, 100 metros do ex-companheiro, sob pena de prisão.”

Veja-se esse acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, de 2009, que decidiu favoravelmente recurso manejado contra decisão de primeira instância, por advogado que defendeu um homem que fora vítima de violência doméstica perpetrada por sua companheira:

"HABEAS CÓRPUS. MEDIDAS PROTETIVAS, COM BASE NA LEI Nº. 11.340/2006, A CHAMADA LEI MARIA DA PENHA, EM FAVOR DO COMPANHEIRO DA PACIENTE. POSSIBILIDADE. PRINCIPIO DA ANALOGIA IN BONAM PARTEM...”

Quem sabe se, na época em que ocorreu o caso contado acima, existisse a Lei Maria da Penha meu amigo não teria movido uma ação de indenização contra a esposa? Depois de requerer ordem judicial restritiva contra ela, obviamente...




*professor universitário e advogado militante, pouco inspirado hoje...

quinta-feira, 24 de março de 2011

TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Marshall Berman escreveu um livro relativamente famoso no final dos anos 1980: Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar. A obra partia de uma afirmação do pensador alemão Karl Marx que contextualizava a modernidade como um fluxo constante de mudanças e incertezas.
A modernidade assim seria marcada pela “certeza da dúvida”: o permanente refazer institucional a serviço de um determinado sistema de poder, vincado na exploração econômica de cunho liberal-burguês.
Para outro pensador alemão que viveu sua maturidade humana e intelectual no olho de um furacão conhecido como Primeira Guerra Mundial, o sociólogo Max Weber, o aspecto central da modernidade seria a consolidação dos processos de dominação racional-legal.
Nesse sentido, a dominação na modernidade pressupõe consentimento (ou legitimação) das relações de comando-obediência por parte dos dominados, fundada na existência de leis, criadas por uma autoridade estatal e que submeteria a todos, indistintamente.
Em termos jurídicos, Max Weber reconhecia o princípio da isonomia como elemento estruturante da sociedade moderna, fundada no respeito às relações sociais baseadas nos contratos de vontades, explícitas e escritas.
Pois bem. Fala-se aos quatro cantos e pelos cotovelos, que o Brasil finalmente alcançou a modernidade. Traduz-se tal feito com dados estatísticos, principalmente os ligados à renda e ao consumo.
No entanto, no campo das relações institucionais, percebemos uma grande distância entre a chamada isonomia legal (“somos todos iguais perante a lei”) e as enormes e absurdas discriminações cotidianas (desigualdade de fato, como no caso do você sabe com quem está falando?).
Nesse sentido, o Brasil é um país moderno sem modernidade: as normas que protegem e garantem a isonomia, todas de fundamento constitucional, precisam ser repisadas, reinventadas e reinterpretadas por uma inflação legislativa infraconstitucional.
Desse modo, repete-se ainda e mais uma vez a distância entre intenção e gesto, como já abordado em artigos anteriores.
Observamos essa situação no cotidiano das relações institucionalizadas, burocratizadas, nos termos weberianos, ou alienantes, na conceituação marxiana:
1) As mulheres que, embora tenham qualificação capacidade e competência, recebem na iniciativa privada, salários em média trinta por cento menores que os homens, embora supostamente submetidos todos aos mesmos critérios de igualdade.
2) Os ocupantes de cargos de comando que confundem as atribuições funcionais com qualidades ou poderes excepcionais subjetivos, justificadores desmandos e incompetências em geral.
3) E também os chefes, gerentes, administradores, contaminados com o vírus do mandonismo, incapazes de delegar mas rápidos na isenção das próprias responsabilidades.
4) A absoluta falta de transparência nas relações de subordinação, além da sistemática sonegação de informações, inclusive a respeito de desempenho e eficiência. Normalmente tais informações são repassadas no momento da demissão, como mero indicativo de alegada incapacidade profissional.
Tudo o que é sólido desmancha no ar. Respiramos hoje os ares da modernidade institucional com um atraso de cinco gerações, retardo esse conceitualmente indicado por alguns periódicos como sintomas de uma “democracia imperfeita”.
Somos uma sociedade que se obriga a mediar as relações sociais por instrumentos contratuais calcados no princípio da igualdade formal (teórica, insisto). Mas que, simultaneamente, abre acintosas brechas para o descumprimento de tais contratos, inclusive com respaldo técnico, legal e jurídico.
De fato, tudo o que é sólido desmancha no ar. Inclusive os direitos dos chamados hipossuficientes, aqueles a quem a lei determina proteção especial, sob pena de violação do princípio da igualdade.
Mas essa já é outra história...

*advogado militante, professor universitário e defensor da transformação da isonomia teórica em igualdade real. Nos termos da justiça, que nem sempre equivale à lei...

terça-feira, 1 de março de 2011

VAMOS ESTAR COMBINANDO O SEGUINTE

Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com

Férias na Bahia, Salvador, meados dos anos 1980. Celular era sonho de Gene Roddenberry, pai do seriado Jornada nas Estrelas. Saudades da família. Toca ligar pra casa. Orelhão nenhum na praia. Posto telefônico das Telebahia, só atravessar a rua, meu bom!

Chegando lá, hora do almoço, o aviso escrito a mão justificava as portas fechadas ao atendimento ao público: “fomos almoçar; voltamos às 12h30min (mais ou menos)...

Corta para o final dos anos 1990. Conversando com um grande mestre e amigo, recém-chegado de um curso de pós-graduação. Conversa informal. E, a cada frase, ele se saía com um “vamos estar fazendo isso”, “vamos estar planejando aquilo”. Meus ouvidos soaram um alarme, pois tinha um cheiro de queimado no ar. Seria esse modo de falar estranho uma moda? Ou estaria eu diante de uma péssima dublagem de um filme “b” norte-americano?

Meus parcos conhecimentos da língua inglesa me diziam que esse “gerundismo” (conheci esse neologismo tempos depois) só podia ser cópia mal compreendida da prosódia (o jeitão de falar) do inglês como falado nos EUA.

Na ocasião, não saberia dizer se meu mestre e amigo se expressava daquele modo para, de forma pedante, impressionar o interlocutor, ou se era puro e simples vício de linguagem.

Só percebi o modismo e seu poder de se alastrar por corações e mentes ao utilizar os serviços de atendimento ao consumidor, invenção contemporânea à minha conversa com o amigo, através dos call centers. Os atendentes dessas centrais de relacionamento especializaram-se no gerundismo (obviamente depois de “estarem fazendo cursos”)!

E dá-lhe “vamos estar transferindo sua ligação”, ao invés de estaremos transferindo sua ligação; “vamos estar providenciando seu pedido”, ao contrário do que, segundo o bom senso, seria correto dizer vamos providenciar seu pedido, dentre outras pérolas (irregulares e sem brilho).

Mas, longe de mim escrever esse texto para criticar o gerundismo! No fundo, penso que ele, sem querer, nos presta um enorme serviço cultural. Afinal, o “going to”, ou se você preferir, o “vamos estar indo/fazendo/estando”, etc., nada mais é do que a expressão lingüística do espírito pragmático de nosso Grande Irmão (epa!) da norte-américa.

O “vamos estar” sugere, simultaneamente, presteza, agilidade e compromisso: cumpriremos o combinado no prazo, pois neste exato momento já estamos providenciando seu pedido/sua reivindicação/seu direito! (ou melhor, “vamos estar providenciando”). No menor tempo, da melhor maneira possível. Prestaremos contas de nossas atividades, de forma transparente.

Aí me permito sonhar. Se o gerundismo sair do confinamento dos call centers e ganhar os gabinetes de prefeitos, governadores, deputados e senadores em geral, talvez ganhemos em eficiência no uso e na aplicação do dinheiro público.

Se o gerundismo, sinônimo então de eficiência, presteza, agilidade e compromisso (ao menos em intenção e teoria), invadir e ocupar a administração pública e, por que não, também a privada, poderemos até reduzir a burocracia (ou o burocratismo, termo mais correto) e seus efeitos perversos na sociedade, como o nepotismo, a corrupção endêmica, a lentidão da máquina pública e a brutal desigualdade social.

Vamos então “estar combinando” o seguinte: o que pode “estar sendo feito hoje”, não “vamos estar deixando para estar fazendo amanhã”!
Estamos combinados?

*advogado militante, professor universitário e deficiente auditivo para gerundismo.

(P.S. Semana que vem volto ao tema dos espaços urbanos. Carnaval pede assuntos mais amenos, certo?)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Justiça libera inscrição na OAB por considerar Exame inconstitucional - Notícias DomTotal

Justiça libera inscrição na OAB por considerar Exame inconstitucional - Notícias DomTotal

OS USOS E ABUSOS DO ESPAÇO URBANO – segunda parte

Weber Abrahão Júnior*


A praça simboliza na história das comunidades humanas o ponto de convergência de identidades e diversidades. Convergência geográfica, pois nela estiveram concentradas as instituições basilares da vida citadina: o templo religioso, a agência financeira, a cadeia pública, a prefeitura, nas cidades de tradição ibérica.

Praça de paz, praça de guerra. Na França revolucionária do final do século XVIII, na fase do Terror Jacobino, multidões indistintas apreciavam o espetáculo das cabeças decepadas rolando da guilhotina. No Brasil das Diretas Já, em meados dos anos 1980, para as praças convergiam multidões de cidadãos crédulos na panacéia das eleições presidenciais (inclusive eu mesmo...).

Os espaços de convivência urbana são assim construídos a partir de múltiplos interesses e identidades, negociados no dia a dia e, na medida do possível, republicana e democraticamente.

No entanto, nos dias correntes, as ruas foram transformadas em meros corredores de veículos em marcha sem fim (isso me lembra um desenho animado com o Pateta, “Sr. Volante e Sr. Andante”: pedestre pacífico tornado motorista furioso a um simples girar de chave no painel do carro).

As cidades, blindadas em aço e vidro, escondem-se da diversidade de expressões e manifestações públicas. O espaço republicano das praças, esvaziado de múltiplos sentidos, somente se recupera nas eventuais festividades religiosas contadas no calendário com os dedos de uma única mão.

Desse modo, vitorioso é o espaço privado das praças de alimentação dos shopping centers, vendidos literalmente como o melhor lugar de convivência possível em uma sociedade que abandonou a liberdade das ruas pela segurança movida a crédito e ar condicionado.

É bom lembrar. Não existe lugar para os tipos pitorescos das pracinhas de antigamente, com coreto e banda. Não existe lugar para o louco manso, aquele que reivindicava a posse da praça (como poeticamente frisado no belíssimo Cinema Paradiso), mas deixava todo mundo passar, graciosamente.

A praça de alimentação, em sua arquitetura convergente no interior dos templos do consumo, simula os eventos coletivos ao ar livre, como os piqueniques. Mas é unilateral em sua permissão. A diversidade se torna homogênea nos cardápios fast food.

Seria possível ressignificar os espaços privados das praças de alimentação sem correr o risco de ser expulso pela segurança privada do lugar? Estou aceitando sugestões.

Alguém aí conhece o Estatuto das Cidades? Semana que vem falamos mais e ainda deste assunto.

* advogado militante, professor universitário, freqüentador de shopping centers.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

OS USOS E ABUSOS DO ESPAÇO URBANO – primeira parte

Weber Abrahão Júnior*


Madrugada dos Mortos é uma refilmagem do original de Cesar Romero, dirigida por Zack Snyder, o mesmo de 300. No filme, a praga dos zumbis se espalhou pelo mundo e um grupo de humanos digamos saudáveis se entrincheira em um shopping center. Cercados de mortos-vivos por todos os lados matam o tédio consumindo descontroladamente as graciosas (no sentido de “de grátis” da palavra...) ofertas das lojas de departamento.


Outro filme, este inglês, Todo Mundo Quase Morto, bem antes de Zumbilãndia, já debochava da descartabilidade da cultura pasteurizada vendida em pacotes financiáveis nos centros de compras, os shopping centers. No primeiro filme, discos de vinil de bandas pop dos anos 1980 eram disparados contra zumbis indefesos! No segundo filme, a história tem seu desfecho em outro templo do consumo, um parque de diversões.


Mas o tema desse artigo não são mortos-vivos. O Direito se ocupa apenas de vivos e de mortos, como se sabe. Eles apenas servem de pretexto para enunciar a nossa questão: os usos e abusos dos espaços urbanos.


Como nascem as cidades? Historicamente surgem em torno de centros cerimoniais, complexos de construções que abrigavam templos, muralhas, caminhos e casas de repouso e moradia. Obviamente próximas a cursos d’água, no contexto da sedentarização dos grupamentos humanos que, então, há mais de cinco mil anos, aprenderam a domesticar a natureza.


Curioso como, nos países de colonização ibérica, e em especial portuguesa, o centro da cidade se identifica com a igreja matriz, na tradição católica. Ou seja, a tradição religiosa orientando, milhares de anos depois, ainda a ocupação do espaço urbano.

Cidade é Civitas em latim; urbs em grego. Cidade, espaço do cidadão, espaço da vida dita civilizada. Urbe, espaço da urbanidade, do respeito aos espaços públicos e da convivência eticamente mediada.

Curioso ainda recordar que o fenômeno da grande cidade, da metrópole que não dorme, foi precedido no século 19 pela ocupação desordenada dos espaços sociais urbanos através da expansão do sistema de fábrica.

Ao mesmo tempo em que degradou e desintegrou os modos de vida rurais, implodindo o modelo familiar patriarcal, permitiu a construção do conceito de cidadania como ocupação dos espaços geográficos e virtuais da cidade, democraticamente.

Os processos revolucionários ressignificam os espaços urbanos. Como diz Caetano Veloso, a praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião.


Ocupação democrática dos espaços urbanos. Ocupação dos espaços democráticos da cidade. Ocupação democratizante dos espaços da cidade. Ocupar-se da cidade.


Podemos então retomar o conceito de praça como local de convergência humana e espaço público por excelência, coração da cidade ou pelo menos do centro da cidade. A praça como o milenar centro cerimonial a partir do qual a cidade se enraíza.

É possível percebê-la como expressão de poder religioso tradicional católico, pois abriga a Igreja Matriz. Mas a praça também é espaço de manifestação política, como comícios, ponto de concentração para passeatas, local para coleta de assinaturas de abaixo-assinados. A praça imita a ágora, representando assim o ideal republicano.


Onde foram parar as praças? Nos templos modernos dedicados ao “deus consumo”, elas estão nos shopping centers. Mas como esse espaço de convivência é demarcado? Semana que vem continuamos essa prosa.



*advogado militante e professor universitário. Consumidor compulsivo e saudoso das cadeiras na calçada nos dias quentes de verão...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A FAMÍLIA MODELADA PELA SOCIEDADE DE CONSUMO

Weber Abrahão Júnior
advocaciaweber@gmail.com


Segundo estatísticas colhidas (um tanto aleatoriamente) nos sítios da internet, o consumo da chamada classe média brasileira apresentou crescimento de cerca de 30% entre 2009 e 2010.

Esses percentuais são indicados a partir de leituras e interpretações de dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Aprendemos no sítio http://www.sejaditaverdade.net/blog2/?p=1848, que o potencial de consumo das classes chamadas de B2 e B1 (com renda média familiar de R$ 2.950 a R$ 5.350, respectivamente) somou 970 bilhões em 2010. Em relação à população total, o potencial de compras também cresceu, mas em ritmo menor. De 2009 para 2010 passou de R$ 1,8 trilhão para R$ 2,2 trilhões - expansão de 22%.

Leituras de fundo econômico desses dados apelam para a positividade da expansão do consumo pelas famílias brasileiras, indicando um aumento no índice de felicidade que acabou por influenciar diretamente na vitória de Dilma Lula da Silva nas eleições presidenciais últimas.

Mas, qual a importância desses dados para o mundo do direito? As reflexões variam bastante. Podem partir da proteção das relações de consumo, consagrada no Código de Defesa do consumidor. Mas passam também pelas formas de estruturação da vida familiar moderna.

A expansão do consumo tem provocado um aumento nas demandas judiciais: serviços prestados fora do prazo ou fora das especificações contratadas; mercadorias entregues com defeito ou com atraso; orçamentos com “maquiagem”; venda casada (produto/serviço mais “garantia estendida” é a modalidade mais comum).
E, na urgência em equipar ou reequipar a casa, atendendo as demandas afetivas ou impositivas dos familiares, muitos consumidores se vêem diante de problemas derivados das relações de consumo, não esperados e nem contratados.

Esta semana atendi em meu escritório um cliente com uma situação jurídica inédita (pelo menos para mim). Ele foi notificado pelo sistema privado de consulta de situação de crédito como inadimplente.

Embora demonstrasse não ter efetuado nenhuma compra nas condições descritas, teve seu nome lançado na vala comum dos maus pagadores, ficando impedido de efetuar transações de crédito.

O banco onde pleiteava abertura de conta-corrente bloqueou o procedimento! A reforma de sua casa vai esperar pelos azulejos que não pode comprar a crédito!

Mas a novidade do caso não está aí. A desorganização nos procedimentos de concessão de crédito ao consumidor enseja diversos tipos de problemas e fraudes, como é por todos sabido.

A verdadeira novidade é que o meu cliente descobriu que quem efetuou a alegada compra em seu nome foi o proprietário do estabelecimento comercial que registrou a alegada inadimplência!

Sem sombra de dúvidas, esse esperto responderá por perdas e danos na esfera cível, além da ação penal cabível à espécie. Aguardemos o pronunciamento judicial, pois então!


* advogado, professor, consumidor desconfiado que guarda recibos, orçamentos e notas de compra por, no mínimo, cinco anos!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES E O DIREITO À INTIMIDADE

Weber Abrahão Júnior*

advocaciaweber@gmail.com


A velocidade e a imprevisibilidade das mudanças sociais nos dias de hoje, apontam para uma discrepância cada vez maior entre a criação e a propagação do uso de novas tecnologias e ferramentas de comunicação e a capacidade do ordenamento jurídico normatizar as relações sociais decorrentes de tal processo.


No campo das chamadas relações interpessoais, a expansão das redes sociais pela via da teia mundial de computadores traduz-se juridicamente em diversos problemas de ordem moral, material e legal.


Nosso ordenamento legal e constitucional prevê como princípio basilar, como verdadeiro meta-princípio a escudar direitos e garantias fundamentais, a dignidade humana, e também, em interpretação sistemática, remete-nos ao Códice Civil em seu artigo 20, caput. A doutrina jurídica traduz inicialmente o princípio como vetor para a identificação material dos direitos fundamentais, estando assegurada quando for possível aos homens existência de fruição de todos os direitos naturais.


A dignidade humana é um atributo que todo ser humano possui independentemente de qualquer requisito ou condição, seja ele de nacionalidade, sexo, religião, posição social etc. É considerada como o nosso valor constitucional supremo, o núcleo axiológico da Constituição.

No entanto, no campo das denominadas relações sociais virtuais – redes sociais via internet, há muito a ser feito para proteger o direito à dignidade humana, via do resguardo à intimidade.


O Decreto 4.829, de 3 de setembro 2003 (Decreto do Executivo), dispõe sobre a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGIbr, sobre o modelo de governança da Internet no Brasil, e dá outras providências.


Em seu artigo 1º, inciso V, o referido Decreto dispõe sobre as atribuições do Comitê Gestor, incluindo articulação das ações relativas à proposição de normas e procedimentos vinculados à regulamentação das atividades inerentes à Internet.


No entanto, passados mais de sete anos, inexiste ainda qualquer lei de âmbito federal a delinear políticas de segurança para a internet, de modo a garantir a eficácia do princípio da dignidade humana nos contornos aqui estabelecidos.


Existem hoje em tramitação na Câmara dos Deputados, diversos projetos de lei versando sobre as referidas políticas de segurança para o uso da internet. São projetos muitas vezes sobrepostos, ou com pouca variação temática.


Ainda que as decisões judiciais afeitas à matéria estejam hoje fundamentadas em analogia e principiologia jurídicas, inexiste legislação específica que estabeleça parâmetros de responsabilização e consequente punição dos responsáveis pela superexposição indesejada da intimidade alheia.



O art. 20, caput, do Código Civil Brasileiro, comanda, verbis:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (grifos nossos)


No vasto campo das relações sociais ditas virtuais, ou seja, aquelas travadas em um espaço não delimitado física ou geograficamente, inexiste em nosso ordenamento jurídico um marco regulatório civil para coibir as ações que ferem a dignidade humana, em seu aspecto do direito à inviolabilidade de sua vida íntima, via da superexposição indesejada da intimidade alheia, submetendo pessoas a situações vexatórias e constrangedoras.


Deste modo, em um mundo cujas relações sociais são cada vez mais mediadas pela rede mundial de computadores, faz-se imprescindível aos operadores do direito o desenvolvimento de reflexões que permitam apresentar soluções jurídicas aos problemas decorrentes das possibilidades de superexposição indesejada.


*advogado militante e professor universitário; (não tem twitter, mas tem Orkut)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

CRÔNICA DAS TRAGÉDIAS ANUNCIADAS

Weber Abrahão Júnior*

advocaciaweber@gmail.com


O cinema nasceu comemorando a capacidade humana de produzir tecnologia, progresso e movimento. A chegada do trem, dos irmãos Lumière, exibido em uma feira em Paris no ano de 1895.


D.W.Griffith produziu épicos como O Nascimento de Uma Nação, para entender as transformações da contraditória grandeza dos Estados Unidos.


Entre as décadas de 1970 e 1980, Hollywood escreveu, produziu e lançou dezenas de filmes-catástrofe, um subgênero cinematográfico bastante apreciado então, e que ainda constitui importante filão dessa indústria.


O elemento temático essencial do filme-catástrofe é a ocorrência de um grande desastre tecnológico ou natural que afeta uma coletividade, causando grande comoção social e produzindo desdobramentos na mídia.


De um modo geral, esse fundamento temático era explorado a partir dos três elementos presentes na chegada do trem dos irmãos Lumière: tecnologia, progresso e movimento.


Aeroporto e O Destino do Posseidon e mesmo Comboio tratavam dos desastres tecnológicos envolvendo meios de transporte. Terremoto e Inferno na Torre lidavam com os desastres naturais.


Quando assistimos hoje ainda e mais uma vez, a crônica da tragédia anunciada trazida pela imprensa, traduzida nos deslizamentos e inundações na região serrana do Rio de Janeiro, na cidade de São Paulo e mesmo no Sul de Minas Gerais, nos perguntamos: por quê?


Aprendemos desde muito cedo que o tempo do cinema é distinto do tempo do cotidiano. Aprendemos ainda, intuitivamente, que assistir ao espetáculo da catástrofe de mentira produz o alívio do “ainda bem que não é comigo”, e ao mesmo tempo reforça os laços de humanidade que nos aproximam e nos unem, naquilo que podemos denominar solidariedade.


A minha geração aprendeu na então denominada Escola Primária, o conceito da brasilidade pacífica e cordial, ecoando equivocadamente Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre. Assim, aos trambolhões, vamos constituindo uma sociedade do riso, do improviso e da mais pura e verdadeira solidariedade.


Essa contraditória mixagem de fatalismo com improvisação continuará gerando as tragédias de verão, pelo caminhar dessa carruagem. Na bela, turística e hoje devastada região serrana do Rio de Janeiro, contavam-se até quarta-feira 18 de janeiro, quase setecentos mortos.


Karl Marx já dizia, em um texto clássico: “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Caetano Veloso, referindo-se ao ser do brasileiro, afirmou uma vez que no Brasil “tudo é construção e já é ruína”.


Não se trata aqui da busca pelos culpados ou mesmo responsáveis, que de fato existem. Esse tipo de tragédia esteve historicamente vinculada aos denominados moradores de baixa renda, ocupantes desordenados das regiões de encosta em processos de favelização.


Agora, diante do quadro desenhado pelos fatos, não se pode mais culpar a ignorância dos pobres. Todas as faixas sociais foram atingidas! Mansões e barracos foram destruídos. A lama que desce dos morros soterrou sonhos e esperanças de ricos e de pobres.


O que resta para além da solidariedade espontânea e natural, para além da espera passiva de mais um trágico verão? O que resta para além das tradicionais desculpas dos tradicionais por sua inação?


Vamos sair do cinema antes da luz se acender. A tragédia está aqui fora, precisamos mudar o final desse filme!




*Advogado militante, professor universitário.

A POLÊMICA SOBRE O ATO MÉDICO

Publicado artigo de autoria deste que vos escreve, na Revista Perfil Médico número 24, ano 03, dezembro de 2010, intitulado A Polêmica sobre o Ato Médico, já publicada em versão estendida neste blog.

Confira lá: www.perfilmedico.com.br



terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Pilha Consciente

Olá...

A entidade sem fins lucrativos (OSCIP) Trilhas Interpretativas lança a campanha:

      
                "Pilha Consciente"

Que
tem por objetivo recolher pilhas usadas (que seriam descartadas de
forma incorreta) e dar um fim seguro a este material que causa diversos
problemas!

Saiba mais em:

http://trilhasinterpretativasudia.blogspot.com/ 



ENVOLVERDE - Revista Digital de Meio Ambiente e Desenvolvimento

ENVOLVERDE - Revista Digital de Meio Ambiente e Desenvolvimento

Desastre natural: drama no Rio revela precariedade das políticas :: Notícias JusBrasil

Desastre natural: drama no Rio revela precariedade das políticas :: Notícias JusBrasil

Credor deve observar data escrita no cheque - Notícias DomTotal

Credor deve observar data escrita no cheque - Notícias DomTotal

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O CADASTRO POSITIVO DE CRÉDITO E O CONSUMIDOR BRASILEIRO: ISSO DÁ SAMBA?



Weber Abrahão Júnior*
advocaciaweber@gmail.com


Como poderia dizer um paciente psicanalizado: quando alguém insiste muito na negação de um fato, no fundo está afirmando-o. Exemplo histórico clássico é dos tempos de Getúlio Dornelles Vargas. Insistia em negar o caráter autoritário do regime político por ele instalado a partir de outubro de 1930. Negava insistentemente. Negou tanto que fez escola.

Quase duas décadas depois do fim do Estado Novo (1945), o Regime Militar instaurado na madrugada do dia 31 de março para 1º abril de 1964 negava seu caráter ditatorial afirmando ser uma salvaguarda democrática...

Mas não precisamos ir muito longe quando se trata desse costume de afirmar negando. Nosso dia a dia está repleto de exemplos, também clássicos. Quer ver? Eu?Ora, eu sou uma pessoa sem preconceitos! Eu não tenho vícios! Futebol, religião e política a gente não discute! E por aí vamos todos nós.


Essa introdução se presta a um breve e despretensioso comentário a respeito da Medida Provisória (MP) nº 518, de 30/12/2010, que disciplina a formação e consulta a bancos de dados com informações de adimplemento, de pessoas naturais ou de pessoas jurídicas, para formação de histórico de crédito.


Tal MP substituiu o Projeto de Lei (PL) 263/2004, vetado pelo agora ex-presidente Lula no mesmo dia da publicação da MP 518/10 no Diário Oficial, por “contrariar o interesse público”.


Assim, a MP passa a ser vulgarmente conhecida como MP do cadastro positivo do consumidor. Segundo dados do sítio Conjur  (http://www.conjur.com.br/2011-jan-04/leia-medida-provisoria-cria-cadastro-positivo-credito):

De acordo com a MP 518/10, o banco de dados tem de conter informações objetivas, verdadeiras e de fácil compreensão, sem incluir juízo de valor ou referências que não contribuem em nada para a análise do crédito. A MP veda inclusão de anotações relativas à telefonia móvel.

Além disso, a inclusão do nome do consumidor, seja ele pessoa física ou jurídica, depende de sua própria autorização. ‘Após a abertura do cadastro, a anotação de informação em banco de dados independe de autorização e de comunicação ao cadastrado’, diz o texto da MP.

Mas as informações sobre as anotações têm de ser apresentadas, gratuitamente, ao consumidor que aderir ao cadastro. Ele também pode, a qualquer momento, cancelar a adesão ou contestar alguma informação errada que tenha sido incluída sobre ele. Também tem direito de saber quem são as fontes que alimentam as informações sobre ele no banco de dados, além dos que fizeram a consulta sobre ele nos últimos seis meses ao pedido.

De acordo com o artigo 7º, da MP, ‘as informações disponibilizadas nos bancos de dados somente poderão ser utilizadas para realização de análise de risco de crédito do cadastrado ou para subsidiar a concessão de crédito e a realização de venda a prazo ou outras transações comerciais e empresariais que impliquem risco financeiro ao consulente’.


Mas, qual seria a relação entre a criação do cadastro como acima indicado e o costume enraizado na cultura brasileira apontado no início, de afirmar negando?


Simples. Todo mundo conhece a história de uma suposta lista negra de crédito, um banco de dados com informações sobre clientes inadimplentes, maus pagadores, ou mesmo aqueles que demandam judicialmente contra empresas (principalmente de crédito, como os bancos). A finalidade dessa lista negra é óbvia, cara-pálida: negar crédito!


No entanto, tal lista mais se parece com cabeça de bacalhau: ninguém nunca viu, mas suspeita que existe! O sistema legal e jurídico protetor dos direitos do consumidor no Brasil proíbe a manutenção de informações desabonadoras de crédito após um período de cinco anos, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.


Desse modo, em que pese o louvável esforço em defesa dos interesses dos cidadãos-consumidores com a edição desta MP 518/10, estamos diante de algumas questões interessantes: em primeiro lugar, será que essa lei vai “pegar”? E se “pegar” será em benefício dos cidadãos-consumidores?


De todo modo, estou nesse momento mais interessado em ponderar sobre os aspectos culturais que a edição da MP 518/10 suscita, ao revelar esse traço da nossa identidade coletiva: ao criar o cadastro positivo de crédito, o Estado admite implicitamente a existência de um cadastro negativo (de resto contrário à lei e inconstitucional), que todo o sistema de crédito no Brasil nega, veemente e insistentemente!


* advogado militante, professor universitário e consumidor atento.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A NOVA EMENTA DA LICC: LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO




Todos os estudantes e estudiosos do Direito aprenderam que o Decreto 4.657, de 4 de setembro de 1942 é a LICC – Lei de introdução ao Código Civil. Ela contém, apesar da denominação restritiva (introdução ao código civil), além de normas de direito privado, elementos de regulação das normas jurídicas de uma maneira geral, quer sejam do direito público quer sejam de direito privado.

A LICC portanto é considerada uma norma sobre normas. A doutrina aponta o conteúdo da LICC: normas sobre normas, assinalando-lhes a maneira de aplicação e entendimento, predeterminando as fontes do direito positivo, indicando-lhes as dimensões espaço-temporais.

Pois bem. No apagar das luzes da administração in personae de Lula, o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou a Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010. Ela altera a ementa do Decreto supracitado, que passa a vigorar com a redação: “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.” 



Veja o texto na íntegra:




Presidência da República
Casa CivilSubchefia para Assuntos Jurídicos
Altera a ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: 
Art. 1o  Esta Lei altera a ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942, ampliando o seu campo de aplicação. 
Art. 2o  A ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942, passa a vigorar com a seguinte redação: 
“Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.” 
Art. 3o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 
Brasília,  30  de dezembro de 2010; 189o da Independência e 122o da República. 
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVALuiz Paulo Teles Ferreira Barreto




Nos termos do art. 1º da referida Lei, tal alteração presta-se a ampliar o campo de aplicação do Decreto 4.657/42. Entendemos, data vênia, que a nova redação da ementa nada mais faz que adequar o Decreto 4.657/42 às realidades de aplicabilidade do Direito em nosso Ordenamento Jurídico, pois sua natureza de “lei sobre a lei” já era um dado da realidade.

Resta saber como será a indicação de sigla da nova Lei: LIDB? LINDB? Aguardemos.

REGISTRO DE IDENTIDADE CIVIL: SEGURANÇA OU CONTROLE SOCIAL?



*Weber Abrahão Júnior
advocaciaweber@gmail.com


Gattacca é uma produção cinematográfica norte-americana de 1997, estrelada por Ethan Hawke, Uma Thurman e Jude Law. Ficção científica de qualidade, conta a história de uma sociedade de seres humanos geneticamente perfeitos, concebidos in vitro por manipulação genética (daí o nome do filme, formado pelas letras iniciais indicadoras dos elementos constitutivos de nossa cadeia genética - guanina, adenina, timina e citosina).

O filme foi lançado recentemente em DVD no Brasil, e vale a pena ser apreciado.

Vincent, o anti-herói da trama, é um homem nascido por vias naturais, imperfeito, portanto. Desse modo é discriminado e segregado quase como um dalit do sistema de castas do hinduísmo. Mas como seu nome latino indica, ele é um vencedor. Burlando engenhosamente os métodos de classificação, verificação e controle de identidade criados pelo sistema, busca alcançar seu sonho de conhecer o espaço.

Aristóteles, o filósofo macedônico, criou um dos primeiros sistemas de classificação dos seres vivos, inaugurando a taxonomia. Ao classificar rigorosamente as funções das palavras e expressões no texto, estabeleceu também os critérios de organização da gramática normativa.

Agrupar, qualificar, selecionar, sistematizar. Tarefas da racionalidade humana equacionadas para o bem ou para o mal. Historicamente se prestam à segregação e à discriminação de grupos, classes e indivíduos.

Assim, bárbaro era o estrangeiro em Roma e posteriormente o não-europeu submetido à exploração. Meteco era o estrangeiro em Atenas, impedido do exercício da democracia. Selvagem, silvícola, “da selva”, o inferno são os outros, na fórmula consagrada de Sartre.

Segregar, discriminar, classificar, agrupar, distinguir. No mesmo ano de lançamento do filme Gattacca, o Congresso Nacional decretou a Lei 9.454 de 7 de abril de 1997, devidamente sancionada pelo presidente da República, instituindo o número único de Registro de Identidade Civil (RIC), cuja implementação será feita a partir desse ano no Brasil:

Art. 1o  É instituído o número único de Registro de Identidade Civil, pelo qual cada cidadão brasileiro, nato ou naturalizado, será identificado em suas relações com a sociedade e com os organismos governamentais e privados. (Redação dada pela Lei nº 12.058, de 2009)
       
Art. 2o  É instituído o Cadastro Nacional de Registro de Identificação Civil, destinado a conter o número único de Registro de Identidade Civil, acompanhado dos dados de identificação de cada cidadão.  (Redação dada pela Lei nº 12.058, de 2009)



O RIC substituirá o RG, tendo a forma de um cartão magnético com chip eletrônico; incluirá nome, sexo, data de nascimento, foto, filiação, naturalidade, assinatura, impressão digital do indicador direito, órgão emissor, local e data de expedição e de validade. Segundo dados oficiais, futuramente serão gravados no chip do RIC os números de todos os outros documentos, permitindo ao cidadão agrupá-los. Maravilhas da portabilidade ou controle social mais eficaz? Você decide...

Conforme afirmações do presidente do TSE, Ministro Ricardo Lewandowsky, “o novo documento de identificação é a prova de fraudes e evita que uma mesma pessoa seja identificada por mais de um número de registro em diferentes estados da Federação ou que o cidadão seja confundido com uma pessoa de mesmo nome”. “Essas vantagens poderão contribuir para mitigar os graves prejuízos para o estado e para os cofres públicos, pois evita crimes”, afirmou.

Por enquanto nós mineiros ficaremos de fora do processo de implantação da nova identidade.  As primeiras cidades que receberão o projeto piloto serão Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Hidrolândia (GO), Ilha de Itamaracá (PE), Nísia Floresta (RN) e Rio Sono (TO). Mas a previsão é que nos próximos dez anos o processo de substituição esteja concluído. E, diga-se de passagem, sem custos para o contribuinte-cidadão.

Os mecanismos de classificação, segregação, distinção se prestam a quê ou a quem, afinal? Reduzir a criminalidade, pacificando o organismo social? Aumentar o controle sobre grupos, classes, indivíduos? Alavancar políticas de integração social?

Vagamos nesse limbo de significados, incertos em relação aos resultados de longo prazo.

*Advogado militante, professor universitário; paranóico desde que teve que sujar as pontas dos dedos na delegacia de polícia para fazer seu RG, nos idos de 1978.