Powered By Blogger

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

OS ATOS INFRACIONAIS E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

(breves anotações da palestra realizada na 103ª Subseção da OAB/MG, em 19/08/2010)



1. Introdução: breves notas sobre a construção dos conceitos de criança e adolescente



Recorte histórico: Ocidente medieval europeu, conforme o historiador Philipe Ariés: criança vista ora como um adulto em miniatura, ora como anjo inocente carente de proteção e cuidados;

Adulto em miniatura: o tratamento dispensado às crianças era indiferenciado em relação aos adultos; exemplifica-se com o vestuário; as famílias nobres deixavam seus filhos recém-nascidos aos cuidados de amas e criados, reencontrando-os para a convivência cotidiana após os sete ou oito anos de idade.

Anjo inocente: construção de identidade associada a uma concepção piedosa e cristã da infância, inspirando cuidados e proteção por uma suposta inocência natural.

Adolescência

A afirmação da adolescência como um “vestibular para a fase adulta” data da Antiguidade Clássica, mas os marcos sociais dessa construção são mais recentes, vinculados aos processos de urbanização e industrialização. Desse modo, a necessidade de preparar os jovens para o mundo passou a pressupor escolarização, que antecederia a entrada do jovem no mundo do trabalho.

A fundamentação científica da adolescência, assim, é multidisciplinar, demandando esforços da psicologia, da medicina, da antropologia, do direito, da pedagogia, etc.

“Revolução bioquímica do cérebro”, conforme teorias biomédicas.









2. Do “direito tutelar do menor” à Teoria da Proteção Integral



Limitando-se aos séculos XX e XXI:

Análise dos Códigos de Menores de 1927 (Decreto 17.943/1927) e de 1979 (Lei 6.697/79) em comparação com o ECA (Lei 8.069/90).

Permite observar mudanças de paradigma

Transposição de um Direito tutelar do Menor para a Teoria da Proteção Integral.

O Código de Menores instituído pela Lei nº 6697/79:

Essa legislação não tinha um caráter essencialmente preventivo, mas um aspecto de repressão de caráter semi-policial e paternalista.

O ECA

Funda-se no Princípio da Proteção Integral, de base constitucional, nos termos do art. 227, que assegura os direitos fundamentais de fundamento constitucional, de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo.

(Contraponto: norma programática, apontando para o futuro? Excesso de idealismo normativista?).

Lembrar aqui a constitucionalização do ordenamento jurídico brasileiro e os novos paradigmas hermenêuticos: sistema aberto de princípios, normas e valores, que deveriam apontar para a eficácia da prestação jurisdicional em uma perspectiva de respeito à segurança jurídica.

Assim, o início da vigência do ECA, em 1990, marcou o abandono do Direito de Menores e o início da adoção do chamado Direito da Infância e da Juventude. A opção teve como fundamento o abandono da doutrina da situação irregular, em favor de um sistema de proteção integral.

Em outros termos, a reação ao problema da delinqüência infanto-juvenil, muda de parâmetros, com o abandono da ideologia de correção em favor do sentido garantista que, num Estado de Direito tenha a função de informar a imposição de sanções, denominadas crime ou ato infracional.



Ato infracional

São atos infracionais todas aquelas condutas descritas como crime ou contravenção penal no Código Penal e na legislação penal (artigo 103 do ECA).



Medidas sócio-educativas

O ECA permite a aplicação de medidas chamadas sócio-educativas a autores de atos descritos pelo Código Penal como crimes ou contravenções penais e, nos termos do ECA, denominados atos infracionais quando, ao tempo do fato, tais pessoas não hajam chegado aos 18 anos de idade. Ainda que atingida a maioridade penal, remanesce a possibilidade de aplicação de medida, desde que o fato date da época da menoridade (artigo 104 do ECA).

Assim, o ECA tem pelno caráter jurisdicional, ou seja, atribuições da autoridade judiciária competente, regra geral, a Vara da Infância e da Juventude: a apuração do ato infracional se apóia em autêntico processo, produzido diante de órgão jurisdicional; e mesmo as hipóteses de exclusão do processo dependem da homologação judicial.

O procedimento, por seu lado, está presidido pelo contraditório, que se

materializa nas garantias de pleno conhecimento da imputação do fato delituoso; de igualdade na relação processual, com possibilidade de produzir qualquer prova necessária a sua defesa; de defesa técnica e gratuita; de audiência pessoal com o Juiz; de exigir a presença de seus pais em qualquer fase.

Asseguram-se todas as garantias processuais e constitucionais próprias do

processo penal (artigo 152 do ECA e artigo 223, § 3º, IV e V, da Constituição.



Debate doutrinário

Assim, estamos diante de importante polêmica doutrinária e mesmo jurisprudencial: a aplicabilidade do principio da insignificância às decisões judiciais envolvendo atos infracionais.



3. O princípio da insignificância e as decisões dos tribunais

Recordação: conceitos de princípios

1) Em sentido amplo: base para construção de saberes socialmente válidos e autorizados;

2) Em sentido específico, jurídico: e a partir de uma concepção sistêmica – aquela que pressupõe relações de coerência entre as normas , elementos de auto-integração do ordenamento jurídico.

De início, podemos entender o princípio da insignificância com suporte na premissa de que o Direito não deve se ater às condutas de pequena monta, que não causam maiores danos sociais ou materiais, em detrimento de condutas efetivamente danosas e que provocam desequilíbrio efetivo nas relações jurídicas em sociedade.



É de se observar:

1)A presença nos tribunais de forte debate ideológico a respeito da aplicabilidade do princípio da insignificância, principalmente porque não advém da dogmática jurídico-positiva penal, ou seja, não está na letra da lei;

2) Suas base são metajurídicas, o que significa admitir sua origem em valores sociais consagrados e que, por isso mesmo, consolidam-se em princípios.

O princípio da insignificância, neste contexto, está conceituado como aquele que permite desconsiderar-se a tipicidade dos fatos que, por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela, a afastar a tipicidade e o princípio da irrelevância penal como sendo capaz de afastar do campo de reprovabilidade a imposição de uma pena.

Funciona como uma recomendação geral aos operadores do direito e em especial aos membros do Ministério Público e aos julgadores em todas as instâncias para que não se detenham na dedicação de incriminar condutas de pouca ou nenhuma expressão econômica ou social.

Poderíamos admitir os requisitos objetivos para a aplicação do princípio da insignificância, com base em precedentes do STF:

Quanto aos objetivos, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, são:

a) mínima ofensividade da conduta do agente;

b) ausência de periculosidade social da ação;

c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente; e

d) inexpressividade da lesão ao bem juridicamente tutelado.

(STF - HC 84.412 - 2ª T. - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 19.11.04).



A base para a fixação dos requisitos acima, como antevisto, foi levado à efeito por repetíveis decisões da Corte Constitucional brasileira. Os requisitos objetivos são intuitivos, auto-explicativos.

No entanto, avaliando acórdãos recentes do TJMG (cento e sessenta, dos últimos cinco anos), percebemos que a regra geral é a não admissão de aplicabilidade do referido princípio, mormente em relação aos crimes de furto e roubo, mesmo em sua forma simples.



Decisões recentes do TJMG:

TRÊS CASOS ILUSTRATIVOS:

FURTO DE 125 COCOS DE UMA PLANTAÇÃO, no valor de R$125,00 é bagatela? (não – Autos 1.0467.07.000435-4/001(1) a dimensão de que o valor consignado no auto de avaliação de fls. 20, não seria pequeno, mas relativo para a grande maioria da população, ou insignificante como sustenta a defesa).

FURTO DE ÓCULOS DE GRAU EM SUPERMERCADO, no valor de R$ 158,00 é bagatela? A subtração de bens, cujo valor não pode ser considerado ínfimo, não pode ser tido como um indiferente penal, na medida em que a falta de repressão de tais condutas representaria verdadeiro incentivo a pequenos delitos que, no conjunto, trariam desordem social. 4. Recurso provido. (STJ - REsp 811.397-RS - 5ª T. - Rel. Min. Laurita Vaz - DJU 14.05.2007 - p. 381).

FURTO DE TRÊS PEÇAS DE ROUPA EM LOJA, no valor de R$ 112,00 é bagatela? Considerando a nossa realidade sócioeconômico, em que metade da população ocupada do Brasil tem rendimento (médio mensal de todos os trabalhadores) de 1/2 a 2 salários mínimos (dados do IBGE - indicadores sociais de 2002), não se pode admitir que o furto de três peças de roupa, avaliadas em R$ 112,00 (cento e doze) reais seja considerado um valor irrisório, ínfimo.

(STJ - REsp 849.035-RS - 5ª T. - Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJU 07.05.2007 - p. 363).





4. Ato infracional e reincidência



No âmbito de aplicabilidade do ECA, faz-se necessário articular o princípio da insignificância ao conceito de conduta reiterada, que de modo algum equivale ao conceito penal de conduta reincidente.

Tecnicamente O art. 63 do Código Penal conceitua a reincidência da seguinte forma: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.”.

Já a Lei das Contravenções Penais: “Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção.”.

Já a conduta reincidente, nos termos de precedentes do STJ e do STF, deve ser avaliada pelo judiciário quando verificadas, no mínimo, duas infrações graves anteriores àquela objeto do procedimento. (HC 43.560/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 04.08.2005, DJ 07.11.2005 p. 321).

Ou ainda: Somente ocorre reiteração, para efeito de incidência da medida de internação, quando são praticadas, no mínimo, três ou mais condutas infracionais graves. Precedentes desta Casa. (STJ - HABEAS CORPUS: HC 147774 SP 2009/0182215-2)

A revolução russa 1917

Check out this SlideShare Presentation:

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Presocráticos

Heráclito e Parmênides: uma lntrodução 

INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA

INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA
Prof. Esp. Weber Abrahão Júnior

I – Das origens aos múltiplos significados da palavra Hermenêutica

Hermenêutica é palavra de origem grega, derivada do verbo hermeneuin, significando inicialmente interpretar. A provável origem do conceito vincula-se a Hermes, mensageiro dos deuses, criador da linguagem e da escrita; anuncia, ou melhor, traduz então inicialmente a vontade dos deuses para os homens. Também considerado deus das raças antigas, preceptor e educador.

Na Grécia clássica, era representado como um jovem entre 16 e 18 anos, pés alados e ligeiros. Corredor esbelto trazia chapéu e caduceu alados. Além de mensageiro e educador, aparece também como guia dos viajantes, apontando o caminho certo a seguir. Também está vinculado à passagem das almas dos mortos aos infernos, solicitando a Plutão um tratamento mais ameno a elas.

Como se percebe, a divindade que empresta seu nome à Hermenêutica é marcada pela polissemia, ou seja, pela multiplicidade de significados. Para os limites de nosso texto, Hermes é o portador de mensagens divinas, independente de possuírem conteúdos bons ou ruins; ele é intermediário das vontades e caprichos de deuses antropomórficos e, portanto submetidos aos desejos, defeitos e vontades humanas.

Mas, além de portá-las, Hermes apresentava-se também como aquele que anunciava as mensagens divinas endereçadas aos mortais. Mensagens que necessitam de interpretação.

Portar, transportar mensagens. Codificar e decodificar mensagens. A tarefa de Hermes não deveria ser das mais fáceis. Naquele tempo de palavra falada, mas não registrada em nenhum suporte material, ser o trans-portador da palavra alheia deveria implicar tanto em boa memória quanto em técnicas para expor tais informações, permitindo sua ressignificação para os ouvintes/destinatários – mas não interlocutores.

Hermes, mensageiro dos deuses, é produção do pensamento mitológico. A mitologia é uma determinada explicação de mundo e, portanto de contextualização cultural, mediando as relações humanas a partir de significados mágico-religiosos. Desse modo, as mensagens originadas pelas divindades e transportadas e transmitidas por Hermes aos homens tinham ao mesmo tempo duas dimensões: elas eram unilaterais e misteriosas.

Unilaterais porque eram instruções, informações ou respostas a consultas oraculares, não existindo espaço para interlocução. Os receptores das mensagens não dialogavam com o mensageiro e tampouco com o emissor-divindade, pois não havia diálogo possível ou cabível.

Misteriosas porque seu conteúdo era ambíguo, marcado por uma grande margem de possibilidades para interpretação – aqui em sentido de desvelar, descobrir o que está oculto – e, ao mesmo tempo, existindo somente uma interpretação válida, cujo significado deveria ser traduzido por alguém especial, um iniciado nas artes ocultas da interpretação; um oráculo em suma.

Portanto: Hermes era um intermediário entre a vontade dos deuses e os desejos humanos. Ao transportar mensagens, traduzia de certa forma as relações possíveis entre dois mundos distintos, mas marcados por inúmeras interseções: o mundo dos homens, submetidos à mortalidade e as incertezas do destino; e o mundo dos deuses que, embora antropomorfizados eram imortais, fazendo de seus caprichos mistérios a desvendar.

Diante de inúmeras possibilidades de interpretação de mensagens misteriosas provindas das divindades, fazia-se necessário criar mecanismos para traduzir de forma correta e coerente as vontades divinas, sob risco de o destinatário entendê-las erroneamente e, via de conseqüência, agir de forma equivocada.

A Hermenêutica, deste modo, e em um sentido inicial, traduz-se como arte da interpretação, ou conjunto de instrumentos lingüísticos que permitem a interpretação dos conteúdos de uma mensagem, restrito a iniciados, a escolhidos capazes de compreender o seu hermetismo.

No entanto, quando os gregos desenvolveram o logos filosófico, afirmaram o primado universal da razão humana sobre os pretensos mistérios das divindades mitológicas. Deste modo, a filosofia substituiu lenta e seguramente as concepções mitológicas, que definiam o conhecimento como privilégio de escolhidos e iniciados nos mistérios e nas artes divinas, pela afirmação da universalidade da razão humana como capaz de apreender o sentido do mundo – tanto natural quanto social.

Em feliz síntese dos pressupostos do pensamento filosófico, Marilena Chauí leciona:

1) A natureza opera obedecendo leis  necessárias  e universais;
2) A intelecção humana é capaz de apreender  a natureza;
3) O pensamento humano também está submetido a leis e regras também necessárias e universais;
4) As ações humanas são fruto da vontade dos homens e não uma imposição de deuses, forças ocultas ou misteriosas;
5) Os acontecimentos naturais ou as ações humanas estão submetidos à leis necessárias ,mas também podem ser contingentes, acidentais: ou seja, é preciso evitar tanto o fatalismo quanto a ilusão da  onipotência;
6) Os homens orientam suas vidas para a busca de valores que dão sentido às suas ações e às suas vidas. A filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos seres humanos não era mistério ou segredo, a ser revelado por deuses ou oráculos aos escolhidos. Ao contrário, a verdade é acessível a todos através da racionalidade, que é a mesma para todos.


De uma perspectiva mitológica passamos assim a uma concepção filosófica. A Hermenêutica torna-se ciência da interpretação. Ou seja, a criação e a utilização de um conjunto de instrumentos técnicos, alicerçados em método acessível a qualquer um que utilize corretamente seus atributos racionais e sendo passíveis de verificação, instrumentos estes destinados a tornar alguma coisa compreensível.

A hermenêutica, analisada em uma dimensão filosófico-científica possibilita a criação de ferramentas de interpretação de conteúdos textuais em uma perspectiva dialógica, impossível sob uma ótica mitológica.

Diálogo aqui deve ser entendido como espaço que possibilita relações horizontalizadas, domínio de um equilíbrio possível entre interlocutores, uma via de mão dupla, onde as falas são reciprocamente refletidas.

No entanto, ao analisar passagens e fronteiras entre interpretações mitológicas e reflexões filosófico-científicas não se deve aqui cair em uma armadilha tão singela quanto perigosa, comum nos textos didáticos sobre o tema: embora as concepções racionalistas universalizantes da filosofia e, portanto, também das ciências possam ser traduzidas em técnicas de interpretação acessíveis a qualquer um que se proponha a dominá-las, seria incorreto afirmar que os homens simplesmente colocaram de lado as interpretações com sentidos herméticos e obscuros restritas apenas a iniciados.

Em outros termos, não existe nem existiu uma “evolução linear” da cultura humana capaz de permitir uma passagem do hermetismo mitológico (conhecimento restrito a um grupo seleto de homens) para a explicação racional e científica (conhecimento de acesso universal).

Em uma aproximação jurídica inicial, a hermenêutica... é “parte da ciência jurídica que tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos, que devem ser utilizados para que a interpretação se realize, de modo que o seu escopo seja alcançado da melhor maneira.” (Carlos Maximiliano, cf. FRANÇA, R. Limongi, Hermenêutica Jurídica.SP, Saraiva, 1999, pág. 3).

Mas, no campo do conhecimento jurídico, o operador do direito que tem o domínio do jargão – a linguagem especializada – não tem garantida a plena compreensão dos textos da lavra de magistrados, promotores, defensores públicos, procuradores, advogados, dentre outros. Entre outros motivos, podem ser elencados (mas ainda não analisados):
a) A dimensão subjetiva da produção dos textos jurídicos em geral, sejam eles decisões de magistrados, sejam pareceres do ministério público, sejam peças processuais da lavra de advogados. É bom ressaltar que a subjetividade deve ser entendida in casu como elemento inconsciente da elaboração mental humana;   
b) A dimensão valorativa presente na formação intelectual e afetiva dos operadores do direito. Nenhum ser humano é capaz de desvincular-se de seus laços de formação de valores, que abrange o campo das emoções humanas. A propósito poderíamos recordar o conceito weberiano de método compreensivo: o cientista social opera objetivamente os conteúdos de sua investigação a partir de escolhas pessoais motivadas. Não seria diferente para os cientistas do direito, entendido academicamente como ciência social aplicada;
c) As possíveis obscuridades presentes nos textos jurídicos, bem como lacunas, isto é, “ausências significativas”. Sabe-se, pelos comandos normativos insculpidos em nosso ordenamento jurídico, que a existência de lei obscura ou omissa não desobriga o magistrado de decidir (artigo 4º da LICC e 126 do CPC). Do mesmo modo, o instituto processual conhecido como embargos de declaração é manejado quando decisão judicial é omissa ou lacunosa em algum aspecto da matéria argüida em juízo;   
d) As possíveis implicações políticas do manejo dos textos jurídicos. Política aqui entendida como o campo de produção e reprodução de relações de poder, que envolvem os atores sociais em uma trama de múltiplos sentidos e interesses: por exemplo, a vitória de uma tese defendida por advogado em juízo, que pode trazer-lhe fama e melhores honorários.

II – A Hermenêutica em enfoque jurídico

Entendendo, em primeiro lugar, o direito do ponto de vista acadêmico como ciência social aplicada, pode-se afirmar que a academia deve permitir a formação de agentes capazes de atender às necessidades cotidianas, em nossas sociedades cada vez mais complexas, de operacionalização de seus sentidos e seus comandos, em uma perspectiva constitucional, isto é, capaz de ter como horizonte a realização dos ditames do Estado Democrático de Direito.

Assim, os operadores do direito – em um sentido amplo, devem ser capazes de compreender e traduzir os textos jurídicos sejam eles leis em sentido estrito, sejam princípios, ou ainda jurisprudências e doutrinas visando sua visada constitucional.  

No universo de possibilidades de operacionalização do direito positivo, (compreendido aqui como um ordenamento jurídico histórica e sociologicamente situado expressando uma determinada conjuntura política e social), a hermenêutica é ciência da interpretação dos textos jurídicos, permitindo assim sua aplicabilidade.

Segundo Pierlingieri, “Não existe, em abstrato, o ordenamento jurídico, mas existem ordenamentos jurídicos, cada um dos quais caracterizado por uma filosofia de vida, isto é, por valores e por princípios fundamentais que constituem a sua estrutura qualificadora” (Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional)

Em que pese o princípio da decidibilidade, insculpido no artigo 127 do CPC, que endereça a aplicabilidade normativa aos magistrados, o universo de interpretações dos textos jurídicos interessa a todos os operadores do direito e ainda a toda a sociedade, embora repercutindo nela de formas distintas.

Ao advogado de defesa, importa interpretar para construir argumentos que protejam os interesses de seu cliente. Ao ministério público, custus legis, cabe a defesa dos interesses da coletividade em sentido amplo. Ao magistrado, impõe-se o respeito aos princípios constitucionais da presunção de inocência, do amplo direito de defesa e do contraditório, perseguindo a difícil tarefa de prestar a jurisdição respeitando o princípio da segurança jurídica, perseguindo a imparcialidade como horizonte e alicerce dos processos decisórios.

No entanto, como compreender de forma adequada aos tempos que correm o conceito de segurança jurídica? Ele não está mais, obviamente, preso a conceitos positivistas clássicos, que viam o direito refletido e confundido com a lei.

Entendida em perspectiva ampla, jusfilosófica, a segurança jurídica é a “tutela dos interesses que melhor traduzam, no caso concreto, a ordem pública constitucional... Em outras palavras, o princípio da segurança jurídica deve ser ponderado diante de outros regramentos com valor constitucional, caso, por exemplo, da proteção da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.” (Carta de Curitiba, em Tartuce, pág. 53 nota pé de página).

Mas, do ponto de vista cotidiano, do cidadão lesado em seus direitos, que busca o socorro da jurisdição, segurança jurídica pode parecer ser a certeza de um resultado a ele favorável. Nada, porém mais distante da realidade.

Para os que militam na advocacia, por exemplo, e que por isso mesmo têm necessariamente um posicionamento parcial, de defesa dos interesses de seu cliente, segurança jurídica deve ser entendida, do ponto de vista das relações possíveis entre litigantes, não como certeza de resultado, mas como direito a não-surpresa.

Em outras palavras, orientado por parâmetros de interpretação estabelecidos em um determinado momento histórico de aplicação do ordenamento jurídico, deve o magistrado decidir dentro de balizas constitucionais previamente conhecidas por todos os interessados.


III – Hermenêutica Jurídica e Interpretação


“O nome dado à ciência que estuda e confecciona o repertório de enunciados a serem respeitados pela vida interpretativa é Hermenêutica. Tal interpretação é feita, sempre, conforme regras e enunciados preestabelecidos, realizado de acordo com regras de como interpretar regras jurídicas.

Assim, a interpretação tem o caráter concreto, seguindo uma via preestabelecida, em caráter abstrato, pela Hermenêutica. Pode-se dizer que a interpretação somente se dá em confronto com o caso concreto a ser analisado e decidido pelo judiciário. A Hermenêutica, ao contrario é totalmente abstrata, isto é, não tem em mira qualquer caso a resolver.

Assim a interpretação é, nada mais nada menos, que a aplicação ao caso concreto de enunciados já estabelecidos pela ciência da Hermenêutica. Uma coisa é interpretar a norma geral, outra coisa é refletir e criar as formas pelas quais serão feitas as interpretações jurídicas. Interpretar é descobrir o sentido de determinada norma jurídica ao aplicá-la ao caso concreto.

A vaguidade, ambigüidade do texto, imperfeição, falta da terminologia técnica, má redação, obrigam o operador do direito, a todo instante, interpretar a norma jurídica visando a encontrar o seu real significado, antes de aplicá-la a caso sub judice. Mas não é só isso. A letra da lei permanece, mas seu sentido deve, sempre, adaptar-se às mudanças que o progresso e a evolução cultural do vocábulo imputam à sociedade. Interpretar é, portanto, explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado do vocábulo, extrair da norma tudo o que nela se contém, revelando seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão.”

Segundo Limongi França, interpretar significa fixar uma determinada relação jurídica, mediante a percepção clara e exata da norma estabelecida pelo legislador (op. cit., pág. 3).

A Hermenêutica Jurídica apresenta uma peculiaridade importantíssima, qual seja, permite interpretar o ordenamento jurídico dando-lhe um novo significado que, muitas vezes, não foi almejado pelo próprio legislador. Considera-se a organização legal (conjunto de leis), os fatos e valores originários e supervenientes ao ordenamento jurídico.

À Hermenêutica Jurídica cabe reconhecer os valores que estão subjacentes à letra da lei e, mais que isto, cuidar para que estes valores continuem direcionados para a causa do homem e da sociedade. A Hermenêutica Jurídica só se justifica quando serve à dignidade e à natureza humana.

Segundo Kümpel, hermenêutica “é a ciência e a arte da interpretação da linguagem jurídica, tendo por objeto sistematizar princípios e regras. Interpretação é o processo de definição do sentido e alcance das normas jurídicas, tendo em vista a integração do sistema com a harmoniosa aplicação da fonte a um determinado caso concreto.

Desse modo, segundo o mesmo autor, a hermenêutica visa interpretar normas garantindo sua aplicabilidade; constatar a existência de lacunas e apresentar critérios para o seu preenchimento; solucionar antinomias jurídicas.

Assim, a relação encontrada imediatamente entre hermenêutica e interpretação pode ser assim entendida: a hermenêutica pesquisa e ordena as regras que a interpretação aplica.

Portanto, a hermenêutica jurídica é a “caixa de ferramentas” do intérprete das normas. Importante frisar que tanto a interpretação quanto a hermenêutica dirigem-se ao Direito, e não à lei, segundo Maria Helena Diniz.


IV – Importância da Hermenêutica Jurídica na Atualidade

Essa importância deriva de dois processos sociais relevantes: 1º. A jurisdicização e a judicialização das relações sociais; 2º. A “inflação legislativa”. O primeiro processo remete-nos a uma vivência cotidiana com as questões afeitas ao universo jurídico e jurisdicional, mormente via mídia, mas também pelo avanço do que a sociologia weberiana denomina de dominação racional-legal (relações políticas mediadas pelo consentimento contratual da vida de relação), levando à ampliação das demandas sociais em busca de tutela estatal.

O segundo processo traduz-se como uma produção legislativa cada vez mais intensa, em todos os três níveis, com velocidade cada vez maior, o que fatalmente amplia as possibilidades de conflitos normativos.
V – O Direito como Ciência e como Sistema

Antes de qualquer consideração mais aprofundada, necessário se faz abordar duas importantes questões, de forma bastante esquemática. A primeira delas refere-se ao caráter científico do saber jurídico, embora vastas discussões ainda hoje apontem para a dicotomia entre as dimensões de arte e de técnica assumidas pelo Direito.

Vamos aqui partir do pressuposto: o Direito tem estatuto científico, e como tal submete-se ao seu campo de validade epistemológica. (objeto, metodologia, verificabilidade, etc.).

No entanto, enquadrando a Ciência Jurídica no campo das chamadas Ciências Sociais, tem-se que ela está classificada como Ciência Social Aplicada.

Desse modo, podemos concordar com os doutrinadores quando afirmam ser o objeto de estudo do jurista um resultado. Ou seja, enquanto psicólogos, sociólogos, antropólogos podem reunir-se para debater as causas, as conseqüências e a dinâmica da violência urbana, cabe aos operadores do Direito atacar o problema a partir de resultados concretos.

Por isso afirmamos o caráter de ciência aplicada do Direito. Desse modo, a interpretação normativa presta-se à sua aplicabilidade e, nesse sentido, procurando produzir certos resultados, a saber:
a) O exercício da jurisdição;
b) A pacificação social;
c) A solução de litígios;
d) A decidibilidade.

É preciso entender a lei como uma forma de comunicação humana {Seis são os elementos no processo de comunicação da lei: a fonte (o legislador); o codificador (a palavra escrita); a mensagem (o conteúdo da lei, as normas nelas insculpidas); o canal (o meio no qual ela está registrada); o decodificador (o processo de leitura e interpretação); o receptor (a quem a lei é dirigida)}.

A partir daí percebemos também o caráter de historicidade do ordenamento jurídico, passando por constantes transformações, com o constante surgimento de novas demandas sociais.

Aqui podemos introduzir a nossa segunda questão: deve-se compreender o Direito a partir de uma dimensão sistêmica: o Direito positivo é aberto, dinâmico, não apenas fechado na norma, mas aberto para as constantes mudanças sofridas pela sociedade. Como afirma Juarez Freitas, o sistema jurídico mostra-se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-se no intérprete.

Seu conceito de sistema jurídico: “Rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido amplo, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição.

Desse modo, intérpretes somos todos nós, operadores do Direito. Mas quando apontamos os aspectos de aplicabilidade e de decidibilidade inerentes ao processo de interpretação, focalizamos especificamente a figura do magistrado, do julgador.

Se tomarmos a lei como o ponto de partida da interpretação (sopesando obviamente os princípios e os valores jurídicos), deveremos observar as condições de aplicabilidade da norma. A certeza normativa conduz o intérprete por um caminho de incertezas, que leva então a uma convicção, o que por sua vez permite a aplicação normativa.

O artigo 4º da LICC (Lei de Introdução ao Código Civil) comanda, verbis:
Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

O artigo 126 do CPC (Código de Processo Civil) comanda, literalmente:
O juiz não se exime de sentenciar ou de despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

Assim, para concluir esta primeira parte, aplicar a norma (em sentido amplo) e decidir o caso concreto, implica em efetuar a subsunção, isto é, adequar a norma, por definição universal e abstrata, ao caso concreto sub judice. Por isso, a interpretação assume um duplo papel: é atividade teleológica com eleição crítica entre diferentes critérios de decisão.

Como afirma Juarez Freitas, deve-se descartar o automatismo, a discricionariedade e a vinculação pura, pois a validade do sistema jurídico repousa na multiplicidade de valores de base constitucional (Caso: quebra-molas no Bairo Karaíba em Uberlândia).

A decisão jurídica vincula-se assim à persuasão, que será abordada oportunamente.



Disciplina: HERMENÊUTICA E LÓGICA JURÍDICA – 4º. PERÍODO
Professor: Weber Abrahão Júnior
Carga Horária: 40 horas
Ementa:
Hermenêutica jurídica, interpretação do Direito e aplicação do Direito. Função social da hermenêutica jurídica. Interpretação jurídica. Métodos hermenêuticos e tipos de interpretação. Integração do Direito: modos e limites. Da inesgotabilidade do sentido à hermenêutica total. O papel da lógica e da ideologia na aplicação do Direito. Tendências contemporâneas em Hermenêutica Jurídica.

Bibliografia Básica:
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2002.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002.
CHAMON JR., Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito. RJ, Lumen Juris, 2 ed, 224 p, 2004.
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2004.
KŰMPEL, Vitor Frederico. Introdução ao Direito. LICC e Hermenêutica Jurídica. SP, Método, 2007, 208 p.
MACIEL, José Fábio Rodrigues. Teoria Geral do Direito. SP, Saraiva, 160 p., 2004.

Bibliografia Complementar: 
COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de lógica jurídica. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. 113 p.
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 259 p.
TRIBE, Laurence H; DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Tradução de Amarílis de Souza Birchal, Coord. e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. xxxv, 158 p.
SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coords.). Hermenêutica e jurisdição constitucional: estudos em homenagem ao professor José Alfredo de Oliveira Baracho. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. xiv, 326 p


                                                                                          

Ato Infracional e Aplicabilidade do Princípio da Insignificância

Como atividade do Primeiro Seminário Jurídico da 103 Subseção da OAB-MG, Monte Alegre de Minas, ministrei ontem, 19 de agosto, palestra sobre o tema Ato Infracional e Aplicabilidade do Princípio da Insignificância.
Prestigiaram o evento diversas autoridades locais, bem como advogados militantes na comarca e jovens estudantes do Ensino Médio.
Em breve farei o post do texto que foi preparado para o evento.